Poder Público e Comunicação Comunitária
Paulo de Tarso Riccordi
Ao contrário de governos de outras paragens, a Prefeitura Municipal de Porto Alegre não tem nem mantém rádios comunitárias, não as instala, não doa equipamentos, não produz programação e desaconselha seu funcionamento em prédios públicos.
Os motivos "externos" para isso são de fácil percepção: se assim o fizéssemos, o primeiro prefeito conservador que vencesse as eleições acabaria, com uma única canetada, com todas as rádios comunitárias da cidade, retomando os equipamentos e tirando-lhes o teto.
Os motivos de fundo se relacionam com a impropriedade de o Estado substituir a organização popular, em nome de acelerá-la. Esse equívoco tem muito a ver com a "pressa pequeno-burguesa" que pretende tomar atalhos na História. Essa "anabolização" não tem consistência política e em nada contribui para a democratização da comunicação e da sociedade. O que produz é exatamente o contrário.
Como a maioria dos presentes a este Simpósio, também nós entendemos que a radiodifusão comunitária faz parte da grande tarefa coletiva em favor da democratização da comunicação, requisito essencial para a construção da cidadania e de uma sociedade democrática.
Logo, é contraditório com esse objetivo pensar em rádios comunitárias mantidas pelo Estado. É o equívoco de quem pensa que se organiza uma sociedade a partir da rádio e pretende substituir o processo político por sua idealização.
Outro equívoco, associado a esse, é a visão que atribui aos meios de comunicação poderes que não têm. Não é o meio de comunicação que faz a política. Se assim fosse, não estaríamos a caminho de eleger o quarto governo petista em Porto Alegre - apesar da partidarização e do comprometimento dos grandes meios de comunicação com o establishment. Os meios de comunicação não têm nem o poder de imobilizar as consciências e a história, nem o poder de gerar, por si, a organização e o movimento popular e democrático. Não é a partir da existência da rádio no bairro que a organização da comunidade irá brotar.
Entretanto, não cometamos o erro oposto da negativa de sua importância. Os meios de comunicação são elementos indispensáveis da política e da organização, reprodução e da própria vida em sociedade.
Entretanto, para democratizar o Brasil não nos basta substituir Roberto Marinho por Lula. A mera troca do emissor (por mais lúcido que seja) não faz uma sociedade mais democrática. Essas novas mensagens continuam verticalizadas, discurso autoritário (ainda que enunciados por quem deseja "o bem do povo", novos déspotas esclarecidos).
Para a democratização da comunicação é essencial varrer o caminho desse conjunto de equívocos e salgar a terra dessas concepções equivocadas, ainda que "bem intencionadas".
Bem público
A comunicação não pode ser reduzida aos meios e aos "especialistas". É um bem público por excelência sobre o qual não pode haver posse ou tutela. O cidadão transcende o consumidor, o cliente. Cada membro da sociedade tem não apenas o direito de ser informado - isto é, de ser receptor de informações - mas tem o direito ao conhecimento, à compreensão do mundo e de seus mecanismos. E, mais, tem o direito a ele próprio informar, opinar, expressar suas experiências e visões, manifestar o controverso, a diversidade, a pluralidade. Não é por outra razão que a Constituição brasileira declara que "é livre a manifestação do pensamento; é livre a expressão da atividade comunicação, independentemente de censura ou licença; e é assegurado a todos o acesso à informação". E o diz precisamente no capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais, que lei alguma - nem mesmo Emenda Constitucional - pode modificar, restringir ou diminuir.
A comunicação é instrumento da própria constituição da vida em sociedade. Somente foi possível à humanidade ter se organizado em sociedade a partir do intercâmbio e democratização de suas experiências, universalizando o conhecimento, possibilitando que um número crescente de pessoas pudessem e possam apropriar-se dos saberes de uma outra, distante que esteja, morta que esteja, para incorporar ao seu quefazer aqueles conhecimentos que lhes permitirão viver melhor e mais facilmente. “A realidade é construída socialmente” , lembram Berger e Luckmann. Não apenas o conhecimento e a história, mas o próprio homem é constituído socialmente. “De fato, não posso existir na vida cotidiana sem estar continuamente em interação e comunicação com os outros”.
Quem monta e como monta a rádio
A apropriação tanto do falar quanto da posse de seus instrumentos é essencial para a democratização da sociedade. Por isso o Estado não pode substituí-la nisso.
O próprio modo como a rádio é construída faz parte da pedagogia democrática e pode determinar seu uso e conteúdos. O esforço das várias associações e grupos do bairro para captar o dinheiro necessário e para definir seus objetivos, é um processo de motivação que exige debates, convencimento, convergência, explicitando e amalgamando esse projeto comum. Já aqui se estão fortalecendo esses vínculos e cumprindo um dos objetivos da comunicação comunitária (provavelmente o maior deles). Essa é a pedagogia da democracia, de que falava Paulo Freire. Indispensável.
O Estado doar o equipamento (por manipulação ou populismo) significa eliminar essa etapa, fragilizando, atrasando ou mesmo impedindo o processo de conscientização e organização, limitando a própria emancipação da sociedade.
A rádio comunitária não é uma reunião de indivíduos que "gostam de rádio", mas a necessidade de expressão da sociedade.
O falar é estruturador da própria realidade. É da essência da linguagem estar ancorada ao cotidiano, à vida diária, expressando e dando sentido às vivências. O papel básico da comunicação comunitária é o de articuladora dessas vidas privadas com a história e o meio onde elas são vividas, dando-lhes sentido e dimensão. A incorporação pela comunidade de meios de comunicação populares lhe permite multiplicar as leituras da própria vila, do bairro, da cidade, da vida, melhor percebê-las, lançar perguntas mais agudas à sua própria realidade, favorecer trocas de saberes. “A possibilidade de múltipla leitura do entorno permite um reconhecimento da própria situação, uma reapropriação do que tradicionalmente tem estado marginalizado” , observa Daniel Prieto.
E isso, certamente, não pode ser feito "de fora para dentro". Logo, não é papel nem do Estado, nem de "líderes geniais dos povos". É tarefa da própria comunidade.
Processo público
Porém, isso não significa que não se deva investir dinheiro público nesse processo.
A compreensão da Prefeitura Municipal de Porto Alegre é a de que rádios comunitárias são assunto público e não estatal. Aí pode - e deve - ser investido dinheiro do Orçamento municipal ou estadual. Mas essa decisão não cabe ao prefeito ou ao secretário de comunicação e sim à própria sociedade organizada em fóruns públicos.
Por exemplo: o III Congresso da Cidade (aberto à participação de todo e qualquer cidadão de Porto Alegre, com força de congresso constituinte) neste ano incluiu entre suas deliberações várias diretrizes que dizem respeito à comunicação. Parte delas corresponde à Prefeitura. Parte, são deveres da iniciativa privada. Outra parte, ainda, corresponde à própria sociedade.
Para que tenham idéia, cito algumas dessas diretrizes:
Financiamento da comunicação comunitária:
DIRETRIZ:
A democratização da comunicação passa pelo esforço de revisão das atuais normas de concessão de rádio e televisão comerciais, pelo controle social da qualidade da programação e também pela possibilidade de que a população tenha acesso a posse e voz através das rádios e TVs comunitárias e jornais de bairro.
AÇÕES:
- Incentivar e apoiar a proliferação de meios de comunicação produzidos e geridos pela própria comunidade;
- Criar mecanismos de captação de recursos públicos e privados para a comunicação comunitária - rádios comunitárias, TVs populares e TV Comunitária, jornais comunitários e de bairro - sob gestão pública do Conselho Municipal de Comunicação;
- Financiar a capacitação para comunicação comunitária.
- Realizar periodicamente Conferência Municipal de Comunicação para deliberar as políticas públicas e comunitárias referente aos meios de produção da informação.
- A Administração Municipal de Porto Alegre e o Conselho Municipal de Comunicação devem promover e financiar debates públicos e estudos sobre a qualidade da programação e das informações produzidas pelos meios de comunicação;
- Garantir o acesso à informação em braile e Libras;
- Criar Conselho Editorial ou de Programação, constituído pela sociedade civil, em todas os meios de comunicação estatais ou públicos.
Essas são decisões da população; imperativas. À Prefeitura cabe, em seu âmbito, cumpri-las.
Além dos Congressos da Cidade, Porto Alegre constituiu outros instrumentos de ação pública no campo da comunicação:
Conferência Municipal de Comunicação
No primeiro semestre do próximo ano será realizada a 1ª Conferência Municipal de Comunicação, um processo de construção de políticas públicas. Isso se dará através da mais ampla consulta à sociedade organizada e não apenas com a participação das tradicionais entidades e fóruns da comunicação. Buscamos que os cidadãos, além de apontar para os problemas, falências e omissões dos meios de comunicação, vão além e digam, desde seus lugares sociais, que tipo de comunicação (em todos os seus processos) demandam e exigem.
Já estamos realizando pré-conferências e reuniões preparatórias. Já debateram a Comunicação e apresentaram suas demandas e diretrizes a Conferência Municipal de Direitos Humanos, o Fórum das Entidades das Pessoas Portadoras de Deficiências e o Fórum de Articulação das Entidades Negras de Porto Alegre. Já há a expressa disposição da Regional Sul da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, da Federação das Associações de Pais e Mestres das Escolas Particulares e das Secretarias Municipais da Educação, da Saúde e da Cultura de realizar a discussão da pauta proposta pelo Conselho.
Esperamos que logo se incorporem as faculdades, sindicatos, conselhos e associações de classe da comunicação.
Conselho Municipal de Comunicação
Porto Alegre criou em 1989, pioneiramente no Brasil, seu Conselho Municipal de Comunicação, integrado por 20 entidades da sociedade civil e um único representante do Poder Público Municipal (o empresariado de jornalismo excluiu-se e não reconhece o Conselho).
Suas funções são deliberativas, normativas, fiscalizadoras e consultivas na área de atividade de comunicação do município, através de estudos e debates sobre a qualidade e a ética da programação, incentivo e apoio à comunicação comunitária, a promoção de políticas públicas de comunicação, a articulação das ações entre os organismos públicos, privados e do terceiro setor e a defesa das disposições constitucionais referentes à Comunicação, entre outras.
Atualmente estamos discutindo uma reformulação de sua composição. Se deseja incluir representação das rádios comunitárias e do Canal Comunitário de TV a cabo, que ainda não existiam em 1989, e ainda a representação de outros setores que se realizam predominantemente através de ações comunicativas, como Direitos Humanos, Educação, Cultura, Saúde, Assistência Social. Isso permitirá ao Conselho tornar-se também um centro de articulação e formulação de projetos que financiem linhas de programação nos meios de comunicação comunitários e mesmo nos comerciais, como educação para geração de renda, para o meio ambiente, para a afetividade e sexualidade segura, etc., que hoje merecem pouca ou nenhuma atenção dos meios.
Fórum Metropolitano de Comunicação Comunitária
Um grupo de associações de radiodifusão Comunitária e jornais comunitários e de bairro reúne-se mensalmente num Fórum Metropolitano de Comunicação Comunitária, sem qualquer participação dos poderes públicos. Trata-se de um fórum não institucionalizado, sem sede ou diretoria, sem estatutos ou regimentos, destinado ao intercâmbio de vivências, troca de experiências, orientação, apoio e articulação de políticas e interesses comuns. Nesse fórum foi articulada a participação da comunicação comunitária no Orçamento Participativo da cidade.
Orçamento Participativo
O OP é um processo de democracia participativa, criado em 1989 pelo primeiro governo da Administração Popular. Através dele a população de Porto Alegre delibera sobre obras e serviços estatais e determina a aplicação de toda a dotação de Investimentos do Orçamento Municipal. Isso acontece por uma série de reuniões regionais e temáticas que se realizam ao longo do ano, com a livre participação - direta - de qualquer cidadão, superando as limitações da democracia representativa.
Neste ano alguns jornais de bairro e rádios comunitárias se organizaram para eleger delegados seus ao Orçamento Participativo. Assim, a comunicação popular indicou quatro dos delegados que formularam a proposta orçamentária da Prefeitura de Porto Alegre para o ano de 2001 e ali determinaram a destinação de recursos públicos para as rádios e os jornais comunitários.
Afinal, em que a Prefeitura auxilia a comunicação comunitária?
Nós acreditamos que nossa principal tarefa é contribuir para a organização da sociedade civil na definição das políticas públicas e instrumentos para a construção de modelos e políticas democráticos de comunicação. Isso tem significado em incentivo e motivação para as comunidades construírem meios de comunicação comunitários, em financiar a realização de encontros, seminários e congressos, editar materiais didáticos e legislação pertinente e em financiar a capacitação para produção em rádio (formaremos 400 pessoas, em 20 associações de radiodifusão comunitária no próximo ano).
Em outra linha de ação, desde o primeiro governo da Administração Popular, a Prefeitura de Porto Alegre publica também nos jornais de bairro e nos comunitários os mesmo anúncios enviados à "grande imprensa". Esses anúncios cobrem seu custo de impressão. A partir da entrada em operação das rádios comunitárias, também aí será veiculada nossa publicidade.
Essas são as fronteiras auto-estabelecidas pela Administração Popular de Porto Alegre. Não temos ultrapassado esta linha. Apoiamos mas não substituímos a sociedade. Nosso papel, como agentes políticos, é o de contribuir para sua democratização radical; possibilitar que os cidadãos conheçam e se apropriem dos mecanismos e ferramentas de poder, passando a determiná-los. Somente assim democratizaremos o Estado e encaminharemos a democratização da sociedade, nosso compromisso maior.
Paulo de Tarso Riccordi - Jornalista, professor universitário, coordenador de Políticas Públicas de Comunicação da Coordenação de Comunicação Social da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
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